quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens.

Assim como o Discurso sobre as ciências e as artes, esse texto foi escrito para responder a uma questão proposta para concurso pela academia de Dijon: “Qual é a origem da desigualdade de condições entre os homens?, e se ela é autorizada pela lei natural.” A desigualdade em questão sem dúvida é a social: nela se baseava fundamentalmente o Antigo Regime. É também a desigualdade que dá a alguns o poder de sujeitar outros.
Esse segundo Discurso tem finalidade polêmica. O autor quer criticar o método daqueles que reconstituem um estado de natureza fictício para justificar a sociedade injusta que corresponde aos seus desejos. Por exemplo, Hobbes representa o estado de natureza como um estado de guerra, porque o que lhe importa é legitimar a monarquia absoluta. Locke, por sua vez, imagina o homem natural proprietário, para fundamentar na natureza e na razão um Estado liberal de proprietários. Assim, cada um procede às avessas, pintando o estado de natureza com as cores da sociedade que se afirma ser Dela oriunda. Contra essas maquinações ideológicas, Rousseau mostra que se pode perfeitamente imaginar outro estado de natureza. Na ausência de dados factuais fiáveis, não é inverossímil imaginar o homem natural com as características que tem na primeira parte de Discurso. O método de Rousseau para encontrar o homem verdadeiro (“o homem de homem”, antes do homem artificial da sociedade), é interior: a meditação solitária nas florestas profundas deve permitir exumar a alma humana em sua verdade. Rousseau está perfeitamente consciente do caráter conjectural de sua descrição do estado de natureza; para ele, é uma hipótese verossímil (tanto quanto todas as outras, e isso basta), e não um fato histórico.
Levando vida por assim dizer animal, o homem natural tem os sentidos mais desenvolvidos que o intelecto (“o homem que medita é um animal depravado”) É feliz nesse estado em que nada lhe falta, muito menos a sociedade, para a qual nada indica que o homem tenha sido naturalmente predisposto. Está pouco exposto às doenças, cuja maioria é imputável à vida social. Suas únicas paixões nada têm de especificamente humanas; elas se reduzem ao amor de si mesmo e à piedade. Ele conhece a saciedade do instinto sexual, mas ignora o amor, fruto das comparações nascidas na vida social. O que distingue então esse homem do animal puro? A superioridade da inteligência, mesmo que esta seja embrionária; a liberdade, que emancipa da servidão dos instintos; a perfectibilidade, potencialidade que permite ao homem sair do seu estado, elevando-se ao decaindo (enquanto o animal está adstrito à sua condição).
Deve-se notar que em todas essas especulações sobre os primeiros tempos da pré- história humana, a perspectiva religiosa (bíblica) está ausente. Rousseau não fala em criação nem em pecado original.
A segunda parte imagina por qual processo a desigualdade pode ter-se imposto a uma humanidade que a ignorava em estado natural. “Esse é o ponto mais delicado do discurso: como explicar uma evolução necessária, mas que nada implicava na natureza das coisas?” Rousseau descreve um encadeamento funesto de circunstâncias, ao mesmo tempo naturais e humanas. Tudo começa com a propriedade, responsável pelas desigualdades de fortunas. A sociedade civil e as leis nascem de desejo dos ricos de legitimar e assim perenizar sua dominação. A partir daí, a sociedade inteira, com seu cortejo de desigualdades sociais, de hierarquias de poder, vai impor sua ordem. Os magistrados, inicialmente eleitos, tornam-se déspotas hereditários, os mesmos que reinam hoje.
A academia de Dijon, por certo assustada com a audácia dessas teses, recusou o prêmio a Rousseau. Mas, para ele, esse foi o começo da verdadeira glória. Mais ainda que no Discurso sobre as ciências e as artes, a eloquência revolucionária traduz o ardor das ideias. O tema do “bom selvagem”, já popularizado pelos relatos dos exploradores, é definitivamente lançado. E o que é mais fundamental, está em marcha uma revolução: o despotismo, a sociedade vigente são ilegítimos e estão condenados à extinção. Melhor ainda, a Revolução (a de 1789), que os derrubará, é criticada por antecipação: Rousseau prevê o advento da revolução burguesa, com suas justificações ideológicas da propriedade privada e dos privilégios. De antemão, ele desqualifica toda legitimação das desigualdades e dos privilégios, seja qual for sua natureza.

Discours sur l’origine et les
 fondements de l’inégalité parmi 
les hommes, 1755.
Jean-Jacques Rousseau, 1712-1778

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